Domingo 16 de Setembro de 9055

Um terço dos atletas de alta competição nunca teve acesso a consultas de psiquiatria

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“Cuidados de saúde mental são tão importantes como a saúde física”

O Observatório de Saúde Mental da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental realizou um inquérito dirigido essencialmente a atuais e antigos atletas de alto rendimento e as conclusões refletem a “necessidade de repensar novos modelos de estratégia”, sublinhou esta quarta-feira Maria João Heitor, presidente cessante da SPPSM, durante o II Seminário Nacional de Saúde Mental no Desporto de Alta Competição, organizado pela Associação dos Atletas Olímpicos de Portugal. “Queremos normalizar o que se chama saúde mental”, sublinhou Luís Alves Monteiro, presidente desta associação.

Casa cheia no auditório da Academia de Artes do Estoril para o II Seminário Nacional de Saúde Mental no Desporto de Alta Competição, realizado nesta quarta-feira, dia 22 de maio, com organização da Associação dos Atletas Olímpicos de Portugal.

Quantos atletas de alta competição poderão estar com problemas de saúde mental em Portugal e que problemas serão esses? Até há sensivelmente um ano e meio pouco ou nada se sabia sobre esta temática. Foi para responder a esta questão que o Observatório de Saúde Mental da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental realizou um inquérito dirigido essencialmente a atuais e antigos atletas de alto rendimento.

 

As conclusões foram apresentadas esta quarta-feira no Estoril perante uma plateia onde se contavam nomes como Vítor Pataco, presidente do IPDJ, Maria de Belém Roseira, ex-Ministra da Saúde, Francisco George, presidente da Sociedade Portuguesa de Saúde Pública, Ana Oliveira, Coordenadora do Projeto Olímpico do Benfica, ou ainda atletas como Nelson Évora, Marta Onofre e Mário Aníbal, ex-atleta, agora treinador. Além, claro, de Luís Alves Monteiro, presidente da entidade organizadora, a AAOP.

Maria João Heitor, presidente cessante da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental, divulgou os resultados do inquérito efetuado através de um questionário online aberto a 12 de abril último e válido por um período de 25 dias e vocacionado para a atletas de alta competição maiores de 18 anos, sendo que três em cada quatro inquiridos já estão retirados.

- Houve 173 respondentes, mas somente 147 foram validados. Mais de 60% dos inquiridos têm ensino superior e houve quem tenha iniciado a prática desportiva aos 2 anos.

- 20 % dos inquiridos manifestaram estigma em falar sobre a saúde mental e 30% sublinhou que sofre problemas relacionais.

 

- Mais 50% destacou que dorme menos de 7 horas por dia.

- 9% dos inquiridos revelou ter problemas de “burnout” em fase de competição.

- 15 % revelou que teve ou mantém consumos alcoólicos e 15% deu conta de ter consumido substâncias ilícitas nos últimos 30 dias/mês.

-20% dos inquiridos já teve doença mental diagnosticada, ou ainda a tem.

- Cerca de 30% dos que sofrem/sofreram de doença mental nunca realizaram qualquer tipo de tratamento.

- 30% continua com problemas de saúde mental ativos.

- 7,2% esteve em depressão moderada ou ligeira.

- 7,2% revelou sofrer de ansiedade.

- 9 em cada 10 inquiridos, ou seja 93%, não tem acesso a consultas de psiquiatria. Um terço nunca teve acesso a psicólogo.

- Metade dos atletas inquiridos não teve acesso a nutricionista.

- Mais de 50% dos atletas diz que a fase de transição para o pós-carreira foi momento extremamente stressante.

- Há, ainda assim, uma elevada resiliência, sendo este um dos fatores principais de proteção, 78,9% dos inquiridos a revelar que conseguem lidar bem com questões de stress competitivo.

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A apresentação destes dados foi o ponto de partida para as mesas redondas que se seguiram, com diversos testemunhos na primeira pessoa de atuais e ex-atletas ou treinadores. Destaque para a presença da ex-Ministra da Saúde, Maria de Belém Roseira, que sublinhou que leva frequentemente à análise política este tipo de discussões para que possam ser entendidos e resolvidos.

Para Luís Alves Monteiro, presidente da AAOP, “continuam a olhar para os atletas como pessoas que não têm capacidade para serem profissionais com capacidades reconhecidas. Parem deolhar para os atletas com estigma que só sabem fazer desporto. Queremos normalizar o que se chama saúde mental e contribuir para que os atletas possam ter uma vida equilibrada durante a fase de competição e depois dela. Todos os atletas pensam constantemente em inovar e superar-se e na AAOP aquilo que fazemos é dar voz aos atletas, colocá-los na primeira fila, com o protagonismo que merecem ter.”

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Por seu lado, Maria de Belém Roseiro, ex-Ministra da Saúde, salientou que “se dúvidas houvesse sobre a pertinência do tema, creio que o aqui se ouviu hoje dissipou-as por completo. Estamos a comemorar 50 anos do 25 abril, mas há imensas coisas por fazer. A possibilidade de emitirmos livremente a nossa opinião é uma delas. A análise de problemas é absolutamente essencial para os resolver. Este colóquio permite identificar problemas e sugestões para resolver diversa situações, assim se consiga conciliar os instrumentos legislativos para tal. Se a legislação não o permitir, então a Lei está errada. O Olimpismo reflete a reputação de um país e é reflexo da capacidade desse país em várias áreas, desde a economia até à saúde. Quanto melhor e mais próspero for o país, em todas as áreas, melhor será o rendimento dos atletas que representam esse país, e isso aplica-se na perfeição ao caso de Portugal e à questão da saúde mental no desporto, que durante muito tempo foi tema tabu. Portugal tem de ser um País vencedor não apenas pela quantidade das medalhas que ganha, mas pelas condições que oferece aos atletas para as ganharem.”

Ana João Heitor, presidente cessante da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental

Adiantou que “em Portugal uma em cada cinco pessoas está afetada por problemas psiquiátricos. Admitindo que os atletas são formatados para vencer a todo o custo, para ter uma performance muito elevada, são, por isso, uma população vulnerável, que podem ser afetados por problemas mentais ainda que em etapas temporárias da sua vida ou carreira. O objetivo deste estudo foi medir pulso do estado da saúde mental aos atletas de alta competição e caracterizar o seu acesso a cuidados. Porque os cuidados de saúde mental, neste caso no atleta, são tão importantes como os cuidados de saúde física, por isso é essencial repensar novos modelos de estratégia.”

Para Vítor Pataco, presidente do IPDJ, “o Instituto tem acompanhado este tema da saúde mental através de uma rede ligada à Cruz Vermelha, que está disponível para os atletas e serve de apoio aos jovens estudantes e atletas. Em conjunto com a AAOP encontraremos caminhos para ajudar os atletas para que eles possam participar em grandes conquistas para o nosso País.”

Enquanto Ana Oliveira, Coordenadora do Projeto Olímpico do Benfica, salientou que “em cada problema há uma solução boa e até algumas derrotas que temos na vida, ajudam-nos a crescer para outro patamar. É nessa perspetiva que tenho sobrevivido. Sempre trabalhei com um plano B, nunca me afundei no problema e procurei sempre soluções. Como aconteceu na altura que já dava aulas, era atleta em simultâneo e o tempo para conciliar as duas situações e descansar era muito pouco.”

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Marta Onofre, atleta olímpica, médica e mãe, referiu que “sempre fui apaixonada por desporto, comecei com 13 anos no atletismo e com 17 anos entrei para medicina. Experimentei muitas dificuldades ao longo da vida na conciliação entre desporto e estudos. A nossa sociedade não está preparada para a conciliação de áreas. Hoje com 32 anos, o meu último melhor momento em termos competitivos foi aos 25 anos. Entretanto já fui mãe, tive uma lesão grave depois disso e, entretanto, ainda não consegui terminar a minha especialidade em medicina.”

Nélson Évora, atleta olímpico, medalha de ouro no salto em comprimento adiantou que “sou da opinião que devíamos ter estatuto de bons gestores, porque temos de gerir o estatuto de atleta medalhado, gerir os treinos diariamente, gerir a família, ir comprar o leite, o pão, a comida para o dia-a-dia, todas as coisas que as pessoas pensam que os atletas de alta competição não fazem. São dramas de um atleta que conquistou tudo o que tinha para conquistar e as coisas mais simples, por vezes são as mais complexas. Há 10 anos não se falava destes problemas de saúde mental. Se houvesse esta ferramenta no início da minha carreira se calhar tinha evitado alguns problemas que tive. Em alguns momentos das minhas medalhas estive nos melhores momentos da minha vida, mas outras aconteceram nos piores momentos. Fiz toda a minha carreira sem qualquer apoio psicológico, por isso fiquei com algumas cicatrizes que demoraram a sarar. Como em tudo na vida existe o lado bom e o lado mau, cabe a nós sabermos escolher o lado. Em 2016 comecei a fazer terapia e após algumas sessões apercebi-me que quem devia estar na terapia devia ser o meu treinador. Tive um treinador durante 25 anos, separámo-nos, mas se ele tivesse terapia tinham-se poupado muitas chatices. Porque o treinador é a pessoa com quem passamos mais tempo na vida.”

Mário Aníbal, treinador e ex-atleta olímpico, disse que “devíamos começar por perceber qual é o perfil e o plano para cada atleta tendo em conta a especificidade de cada disciplina, de cada modalidade. Hoje, enquanto treinador, tenho dificuldades em perceber o que pensa cada um dos atletas, sou treinador não sou psicólogo, por isso tenho de ter uma equipa multidisciplinar que potencie o rendimento dos atletas, que explore as potencialidades de cada um, mesmo sendo, se calhar, um jovem problemático. Fui atleta e hoje sou treinador… e faço terapia para aprender a comunicar com os meus atletas.”

Alberto Silva, treinador de Diogo Ribeiro, bicampeão mundial de natação, referiu que “quando comecei a trabalhar com o Diogo eu não o conhecia, peguei nele com 16 anos, ele tivera um acidente grave e quando o começamos a trabalhar ele alegava muitas vezes que estava doente para faltar aos treinos. Mas ultrapassámos isso, fomos indo para as provas, e o que posso dizer é que em todas as competições ele sempre disse que estava nervoso, mas sempre conseguiu superar esse nervosismo cada vez que entrava na água. Posso dizer que trabalhamos há três anos e até agora nunca tivemos apoio de psicólogo.”

Esta quinta-feira será o segundo e último dia do evento.

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