Em entrevista ao site da Federação de Andebol de Portugal, a principal figura do Andebol feminino em Portugal ao longo de 38 anos de carreira como treinadora e professora de educação física, Fátima Monge da Silva passou em revista os dados mais marcantes de uma vida positiva para o desporto nacional.
Considerada por muitos como a pioneira da afirmação e do crescimento do andebol feminino em Portugal, Fátima Monge da Silva conta no currículo com inúmeros títulos conquistados, criou dois clubes e dedicou a vida profissional à modalidade. Formada em Educação Física, Fá – como é conhecida – foi Treinadora e Seleccionadora Nacional entre 1978 e 1990. O papel que desempenhou na valorização e desenvolvimento do desporto feminino no nosso país é irrefutável e foi reconhecido em diversos prémios de carreira.
Ainda assim, foi no Basquetebol que iniciou a sua carreira como treinadora.
“Em 1971/1972 – referiu Fátima – fui colocada como professora de Educação Física no Liceu Maria Amália Vaz de Carvalho. Durante toda a minha vida dediquei muito tempo ao desporto, primeiro como praticante e depois como professora. Fui praticante de Basquetebol e tinha o cartão de treinadora. Quando cheguei ao Liceu Maria Amália falei com a reitora e abri inscrições para a prática dessa modalidade. A iniciativa teve uma grande adesão e comecei a dar treinos três vezes por semana, num campo de terra batida em que os cestos eram só de arcos sem tabelas. Claro que, com tanto uso, os cestos partiram-se”.
O que a levou a mudar de disciplina?
“Como as jovens queriam continuar a ter uma prática desportiva e no Liceu só havia nesse mesmo ringue um par de balizas, resolvemos avançar com o Andebol. Começamos a entrar em convívios escolares, com bons resultados. Passados quatro meses chegaram os cestos arranjados. Propus que voltássemos para o núcleo de Basquetebol, mas as alunas já não quiseram, já estavam habituadas à modalidade e como estava a correr bem, não quiseram voltar. Resolvemos então continuar com o Andebol e entrar em competições. Nessa altura só havia Provas Eventuais de Senhoras, como então se dizia, na época de 1973/74. A nossa equipa era juvenil, mas persisti e comecei a tirar os cursos de Andebol, para me sentir mais segura nesta modalidade”.
Apesar das dificuldades existentes, sentiu que havia caminho para um eventual sucesso?
“Por aquilo que vi na escola, nunca pensei que poderia haver tanto sucesso na modalidade com jogadoras femininas pois, até aí, o andebol era uma modalidade essencialmente masculina e as senhoras estavam ainda a dar os primeiros passos. A primeira preocupação foi criar uma equipa que fosse direccionada para as praticantes femininas, que era algo que não havia na nossa sociedade. Infelizmente as condições para a prática desportiva que a mulher dispunha eram muito deficitárias”.
Quando decidiu treinar equipas masculinas, que diferenças e dificuldades encontrou em relação ao feminino?
“Era evidente que, estando o desporto masculino mais desenvolvido, existia uma clara diferença de resultados alcançados, um calendário competitivo mais exigente e, dentro das nossas limitações, fomos tentando criar condições para o gosto pelo trabalho, na procura de uma constante superação. A nível do número de treinos, as equipas masculinas exigem mais quantidade, pelo menos um treino por dia e eu pretendia oferecer as melhores condições. Também exigiu mais formação da minha parte, pois começam a aparecer problemas que temos que saber resolver. Houve uma dificuldade, não com as equipas masculinas, mas sim com a oposição dos árbitros e público. A mentalidade de um país machista, que excluía as mulheres deste tipo de actividades, marcou este período.”
Do Liceu Maria Amália, passou pelo Clube Atlético de Campo Ourique e, fruto do sucesso no percurso, chegou ao Benfica, onde perspectivou “que a situação dava mais segurança e apoio ao trabalho”. Por outro lado “a exigência, no que diz respeito ao resultado, tornou-se uma grande pressão à qual não estava habituada.”
Tem a fama de ter “lançado” atletas que acabaram por tornar-se nomes fortes do andebol feminino em Portugal. Isso deixa-a orgulhosa?
“Sinto um orgulho enorme, mas o mais importante é estar bem comigo própria e com o estímulo das jogadoras que ajudei a formar. Procurei sempre encaminhar as minhas atletas para uma correcta formação cívica e desportiva e seguia uma filosofia em que a vitória sobre os opositores não era o principal objectivo, mas sim, que o grande adversário somos nós e as nossas próprias limitações que temos de ultrapassar. Esta foi a filosofia que sempre implementei e trabalhei em mim, porque é a essência do desporto.”
O sucesso levou Fá até ao Liceu Camões, onde esteve durante 22 anos, um período que recorda como sendo “de grande crescimento e alegria, pois contribui para a formação de centenas de jovens às quais me ligam ainda profundos laços de amizade. Sinto que contribui para o crescimento deles e também para a minha própria valorização”. Um dos momentos mais relevantes nesse período foi a presença nas competições europeias.
Durante cerca de 12 anos, Fátima Monge da Silva foi seleccionadora nacional, entre 1978 e 1989. A antiga professora revelou que nunca pensou ocupar esse lugar, mas que isso chegou “como um reconhecimento implícito da qualidade do trabalho que desenvolvi”.
Em 1986 Portugal alcançou um lugar no Campeonato do Mundo do Grupo C, em Espanha, um feito que Fá diz ter sido “um dos momentos pilares da minha carreira” e recordou “com uma grande satisfação do dever cumprido. Também o considerei um incentivo para mim e para as minhas jogadoras”.
Dois anos mais tarde, a selecção nacional venceu o Torneio da Sicília. Foi o confirmar de um trabalho de sucesso que tinha sido feito até então?
“Veio valorizar o andebol feminino. Foi a primeira vez que uma equipa feminina conseguia uma vitória internacional, Isto contribuiu para nos sentirmos mais fortes, para demonstrarmos que valia a pena apostar no andebol feminino, pois as condições de trabalho e de participação eram precárias. Dar mais valor à qualidade do trabalho que estavamos a desenvolver.”
O seu sucesso enquanto treinadora deveu-se também à exigência que a caracterizava?
“Sim, sempre fui perseverante na minha vida, trabalhava muito e o sucesso que alcancei exigiu muito trabalho para o conseguir. Nunca abandonei os objectivos traçados.”
Quando se retirou como treinadora, de que forma ficou ligada à modalidade e porquê?
“Infelizmente, por razões de saúde, tive de abandonar a actividade de treinadora que mantive ininterruptamente ao longo de 38 anos da minha vida, o que me entristeceu muito. No entanto, nunca me desliguei completamente, pois o andebol foi – e sempre será – a minha modalidade de eleição. Tenho a alma cheia de boas recordações e de momentos de realização pessoal.”
Em termos comparativos, como é que olha para o andebol de hoje?
“O desporto em geral, e o andebol feminino em particular, tiveram uma enorme evolução, consequência de um conhecimento cada vez maior do que é o treino. As Faculdades de Educação Física e de Desporto dedicam-se cada vez mais à preparação dos seus alunos para o ensino dos diferentes desportos. Houve uma grande valorização das competências relacionadas com o planeamento, a orientação do treino, a liderança e o conhecimento do jogo, que juntamente com melhores condições de trabalho proporcionadas pela Federação de Andebol de Portugal, Associações Distritais e clubes, justificam a grande evolução que o andebol tem tido nos últimos anos.”
Que tipo de treinadora seria a Fá no andebol actual?
“O trabalho que realizaria seria feito com o mesmo empenho e dedicação que sempre tive em todo o meu percurso, a grande diferença estaria nas condições que os clubes hoje criam e na disponibilidade que as atletas teriam para treinar e para se dedicarem à modalidade. Houve aqui um enorme progresso.”
Fátima Monge da Silva não quis deixar de reforçar que “ao longo destes 38 anos como treinadora de andebol, criei dois clubes, conquistei muitos títulos, formei muitos atletas e nunca recebi quaisquer remunerações. Sempre trabalhei intensamente movida pela minha paixão e pela vontade de fazer o melhor para que os atletas que comigo trabalharam desenvolvessem ao máximo as suas capacidades, sempre no respeito pela ética e pelos valores do desporto. Nada teria conseguido sem todos vocês!”.