Numa palestra proferida a convite da Associação Internacional de Imprensa Desportiva (AIPS), no decorrer de uma acção de formação e-College promovida por esta instituição internacional de jornalistas de desporto, Sir Craig Collins Reedie, ex-presidente da WADA/AMA (Agência Mundial Antidopagem), teve oportunidade de discutir a dopagem no desporto com os jovens repórteres.
De acordo com a reportagem conduzida pela também jovem repórter espanhola Maritza Cárdenas, em serviço para a AIPS, “Tour da Farsa” e “Tour da Dopagem” foram os apelidos dados no Tour de França de 1998, depois que uma série de escândalos de doping atingiram a corrida de ciclismo mais proeminente do planeta.
Segundo a notícia veiculada no site da AIPS, “os ataques e prisões realizados pela polícia durante o evento foram a centelha que acendeu o que se tornaria a Agência Mundial Antidopagem (WADA)”.
Sir Craig Reedie, ex-presidente da WADA e membro do Comité Olímpico Internacional (COI), desempenhou um papel importante em muitos aspectos no mundo do desporto, tendo começado por transformar o Badminton num desporto olímpico, como presidente da Federação Internacional e depois como membro do conselho do comité organizador dos Jogos de Londres 2012, antes de passar para o desempenho de funções no COI e na WADA.
Sobre a criação da WADA, salientou que “foi formada em 1999 para reunir os movimentos desportivos e os governos do mundo na luta contra a dopagem” tendo acrescentado que “o catalisador para isso foi um incidente no Tour de France 1998, quando a polícia francesa parou a corrida, verificou todos os veículos que os acompanhavam e descobriu que eles estavam cheios de substâncias e drogas proibidas, situação que o desporto achava difícil de controlar, porquanto era preciso haver uma aliança com os governos para torná-lo mais eficiente”, questão que começou a ser debatida no ano seguinte.
Recordou que “antes da formação da WADA, era possível que um ciclista fosse suspenso para competir na Dinamarca, mas ele poderia pedalar na França e na Alemanha. Da mesma forma, para uma ofensa específica de doping, um ciclista seria sancionado por um período de três meses, ao mesmo tempo que um remador que cometera a mesma ofensa e com a mesma droga seria banido para toda a vida. Em situações como essa, foi visto que uma organização como a WADA seria potencialmente uma boa cartada.”
Dado o primeiro passo, que teve o apoio de muitos países, a WADA avançou para alavancar os seus próprios desafios, tendo definido as regras da “batalha” contra o uso de substâncias ilegais, se bem que com os governos e desportos também envolvidos, como parte interessada na verdade desportiva, acima de tudo e de todos, apesar de alguns constrangimentos no início.
Pouco a pouco os países e as organizações internacionais do desporto foram interiorizando o problema e cada vez mais se aliaram à causa, sendo necessário assegurar, em especial, que a WADA assegurasse uma independência, a todos os níveis, para evitar eventuais comportamentos “desviantes”, mormente no que à recolha das amostras e aos resultados obtidos.
Respondendo a este assunto, Reddie salientou que “o teste é realizado por organizações antidopagem dirigidas por países ou desportos, sob padrões internacionais adequados com origem nas regras definidas e aprovadas pela WADA. Todo mundo assina o mesmo conjunto de regras e temos que cumpri-las e cuidar delas”.
Em discussão esteve também a questão que se verificou na Rússia, a partir de 2010, quando veio a público que poderia haver um programa de dopagem patrocinado pelo Estado, quando o repórter e investigador Hajo Seppelt descobriu um suposto sistema de uso de substâncias ilegais liderado pelo governo russo.
Uma investigação da WADA confirmou as suspeitas do referido repórter, o que levou à remoção de 111 atletas russos dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos do Rio de Janeiro (2016) e a uma potencial exclusão total dos Jogos de Tóquio (2020).
Sobre este assunto, Reddie salientou que “a situação russa tornou-se aguda porque havia mais compreensão dos problemas. Isso ganhou maior publicidade da mídia quando a cadeia de televisão alemã ARD (2014), apresentou um documentário mostrando evidências de denunciantes russos de que houve fraudes desenfreadas no desporto na Rússia. Como a WADA não tinha competências para intervir neste âmbito, foi precisar alterar o Código Mundial Antidopagem, o que só aconteceu em 2015, altura em foi criada uma comissão de inquérito que, depois das investigações realizadas, constatou que quase todo o desporto russo tinha utilizado produtos e substâncias proibidas”.
Na sequência, Reddie recordou que “enquanto tentava resolver o problema russo, reconstruindo sua organização nacional antidoping (RUSADA) – que deixou de ser completamente ineficaz para ser muito eficaz – uma das condições a cumprir foi quebrada pelas autoridades russas. Em particular, precisávamos de acesso ao laboratório de Moscovo para examinar os dados e as amostras mantidas em arquivo e tivemos a enorme surpresa e grande decepção que as autoridades russas estavam adulterando os dados. Daí a decisão de que os desportos do país fossem penalizados por um período de quatro anos. A única excepção importante foi que as sanções não se aplicariam aos atletas que pudessem provar que têm um histórico de doping limpo”.
Reedie admitiu a sua preocupação com os tempos sombrios do bloqueio, tendo salientado que “os programas de teste para todos os atletas não chegaram a um ponto final, mas estão num nível de actividade muito mais limitado e, portanto, tenho que ser cínico e dizer que algumas pessoas trapaceiam. O desafio é o que fazer quando isso terminar e quando os oficiais de doping podem ter acesso aos atletas”.
E foi mais além ao adiantar que “acho que quem decide trapacear corre riscos por várias razões. Primeiro, porque existe agora um grau muito maior de inteligência na WADA e em outras organizações antidopagem sobre de onde vêm as trapaças, onde elas estão geograficamente e outros aspectos. Em segundo lugar, somos mais espertos do que éramos antes, porquanto somos melhores em exames de laboratório, temos uma lista abrangente de substâncias proibidas e também espero que as pessoas se comportem dentro das regras. Muitos atletas, na minha opinião, são limpos, outros não. Por fim, armazenaremos amostras por um longo período e, assim que a ciência melhorar, iremos testá-las novamente para verificar se haverá razões para se sancionar quem não cumpra”.
Respondendo à pergunta sobre o que acha das pessoas que se envolveram no passado e que actualmente ainda colaborem com as modalidades e os atletas, Reedie salientou que “a situação, do ponto de vista da WADA, é bastante clara. Temos uma regra no código antidopagem sobre associações proibidas. Listamos os nomes dos treinadores, médicos e quem cometeu ofensas e dizemos aos atletas que não devem ter nada a ver com essas pessoas. Muito poucos atletas se dopam por conta própria, porquanto há sempre há alguém envolvido: um médico, um treinador ou um agente ou mesmo um familiar. Muito poucas pessoas fazem isso por conta própria. Tudo isso depende da comunicação, mas a lista de pessoas com problemas de associação proibidos precisa ser conhecida e precisa ser conhecida pelas autoridades do país, o que é mais eficaz”.
À pergunta sobre que “sistemas foram empregues para escurar e proteger os denunciantes”, Reedie, respondeu que “o papel dos denunciantes sempre foi difícil no mundo do doping, porque os atletas tem relutância em referir outros atletas que estão competindo contra eles no mesmo desporto. Para tentar melhorar esse sistema, quando aumentamos nosso departamento de inteligência e investigações, criamos um departamento separado que lidaria com qualquer pessoa que quisesse vir até nós como um denunciante chamado. Temos acordos estabelecidos para que seus nomes não se tornem públicos, a menos que solicitem e que as informações fornecidas sejam investigadas. Depois, passamos o resultado da investigação para o país e respectiva modalidade. Várias centenas de pessoas entraram em contacto com a WADA e pudemos ajudá-las”.
Sobre a visão futura dos testes antidopagem, Reedie salientou que “gastamos quantias razoáveis de dinheiro, não tanto quanto deveríamos, em pesquisas antidopagem. O sistema actual de análise de urina consome tempo, é bastante complicada e cara. Fizemos algumas melhorias importantes ao introduzir o passaporte biológico do atleta (ABP). O sistema de análise de sangue é melhor e, de facto, foi extremamente influente na interrupção da trapaça organizada na Rússia, porque eles não conseguiram vencer o sistema ABP. Se conseguirmos que o sangue seco (DBS) seja o mais eficaz possível, podemos melhorar os testes e estamos animados com isso. Mas a solução final aqui é educar os jovens e que eles precisam entrar no sistema educacional nacional. Deveria estar no programa de educação física nas escolas, para ser directo e transmitir a mensagem de “não trapaceie”.
Quanto à aplicação de sanções de prisão para os utilizadores de produtos dopantes, Reedie referiu que “na WADA, trabalhamos arduamente para produzir uma lista de sanções que vão até no máximo quatro anos por um primeiro crime grave, oito anos é a sanção seguinte e, depois, para toda a vida. Essas são sanções desportivas e, quando as colocamos no código, recebemos conselhos legais muito detalhados. Existe uma convenção legal de que a punição deve ser proporcional ao crime. Se você decidir atirar na cabeça do seu pior inimigo, as hipóteses são de que acabe na prisão. Se, no entanto, você decidir colocar uma agulha no braço e injectar EPO, talvez você não precise de uma sanção criminal, talvez uma sanção desportiva seja suficiente. Não somos a favor de sanções penais”.
No que respeita à condecoração atribuída pela Rainha de Inglaterra com o título de “Sir”, ao ser membro do Comité Organizador dos Jogos Olímpicos de Londres’2012, presidente da Federação Internacional de Badminton e presidente da Agência Mundial Antidopagem, a jovem repórter da AIPS questionou sobre qual foi a conquista mais importante, tendo Reedie respondido que “tenho sempre um prazer pessoal em ir ao palácio de Buckingham e fazer parte das festas de honra de lá. Mas há outros momentos da minha vida que são importantes. Um deles, na sessão do COI em Berlim Oriental (1985), quando Juan Antonio Samaranch (então presidente do Comité) anunciou que o Badminton, o meu desporto, se tornaria modalidade do programa olímpico, o que significava que se tinha desenvolvido em todo o mundo de uma maneira maravilhosa. O segundo foi em Singapura (2005), quando Jacques Rogge abriu o envelope e disse: ‘os jogos de 2012 são premiados com a cidade de Londres’, tendo tido oportunidade de criar o comité de organização. E um momento particular que nunca esquecerei foi a cerimónia de encerramento dos Jogos Paralímpicos de Londres, quando o presidente do nosso comité organizador, Sebastian Coe, terminou dizendo “quando chegou a hora, fizemos tudo certo”.
Um homem determinado, que fez um excelente trabalho na WADA, que teve oportunidade de dar a conhecer a sua vida aos jovens repórteres da AIPS, numa sessão via web.